Como um espião russo usou e-mail de idosos, alugou apartamentos e criou identidade secreta no Brasil com pedras preciosas


Eric Lopes era dono de uma joalheria em Brasília e de um escritório na Avenida Paulista, no terceiro andar do edifício Paulista Corporate, ao lado do Masp. No programa “Empresários de Sucesso”, em 2021, a Esfel Jewerly é descrita como “disruptiva”. Lá, os clientes podiam contar com colares próprios, personalizados, em vez de “apenas” os diamantes e esmeraldas de sempre. O empresário não aparece no vídeo, mas o negócio parecia decolar. Até que um dia Eric desapareceu.

Na Polícia Federal em Brasília, os agentes o investigavam com a suspeita de que Eric Fauchere Lopes fosse, na verdade, um espião russo. No Brasil, havia se infiltrado no ramo de luxo como um gemólogo, um especialista em pedras preciosas. Oficialmente, porém, tinha ficha em dia. O que também o tornou um certo especialista em um jogo de gato e rato internacional.

Eric tinha CPF, telefones, e-mails. Morava no Bixiga, no nono andar de um prédio discreto no centro de São Paulo. A GQ Brasil teve acesso a mais endereços em seu nome. Também foi ao escritório mantido na Avenida Paulista, mas a recepção de vizinhos e porteiros em todos os locais foi a mesma.

“Eric? Nunca ouvi falar”; “Aqui nunca teve uma loja de joias. Seu endereço está certo?”

Uma fábrica de espiões russos no Brasil

Eric era parte do chamado “celeiro de espiões russos” no Brasil, segundo a PF e o FBI, a agência de investigação criminal dos Estados Unidos. Por aqui, tinham identidades secretas até serem enviados a missões mais complexas pelo mundo. Os detalhes da investigação foram divulgados pelo jornal The New York Times na última semana.

O método é radical. Em vez de grampos telefônicos ou ações hackers, os infiltrados casam, fazem amigos, alugam imóveis, tornam-se donos de empresas. Assim, vigiam diplomatas, dissidentes, miram alvos e desestabilizam regiões com informações sobre os rumos políticos enviados diretamente para o Kremlin.

Eric escolheu o luxo. A página da Esfel no Instagram anunciava brincos de turmalina em ouro branco por R$ 11 mil (sem juros). Uma tanzanita extraída de uma das “últimas minas” no continente africano por R$ 10 mil. Um pingente de topázio imperial de Ouro Preto, de Minas Gerais, com propriedades para canalizar “boas energias”. Todos com selos de garantia.

O último anúncio de venda da Esfel no Brasil: um anel de diamantes e esmeraldas — Foto: Reprodução/Instagram
O último anúncio de venda da Esfel no Brasil: um anel de diamantes e esmeraldas — Foto: Reprodução/Instagram

Para inaugurá-la em Brasília e São Paulo, declarou à Receita Federal um investimento de R$ 100 mil. A papelada não foi um problema.

Eric tinha até mesmo uma mãe para os registros: Annie Fauchere Lopes, em uma certidão de nascimento (oficializado no dia 3 de janeiro de 1986). Como aparente adepto do esoterismo, escolheu até mesmo o signo de capricórnio na vida brasileira.

Não há qualquer prova que Annie Lopes tenha existido e batizado um filho. O nome é falso, segundo a Polícia Federal. O nome verdadeiro de Eric seria um desafio para qualquer atendente de cartório: Aleksander Andreyevich, nascido em alguma região desconhecida na Rússia ou no Oriente Médio.

Um brinco de esmeralda na loja "disruptiva" de Eric, que mantinha identidade secreta no Brasil — Foto: Reprodução/Instagram
Um brinco de esmeralda na loja “disruptiva” de Eric, que mantinha identidade secreta no Brasil — Foto: Reprodução/Instagram

Para se comunicar, Aleksander teria usado os dados de uma empresária de 75 anos de Santo André, na Grande São Paulo. À GQ Brasil, ela diz nunca ter tido contato com um gringo com sotaque ou tido conhecimento de um e-mail em seu nome para possível envio de mensagens.

Em Brasília, o número de telefone da Esfel está registrado no nome de um homem de 60 anos. Ele atendeu ao telefonema da GQ, mas encerrou a chamada ao ser informado sobre o teor da reportagem.

O espião não era o único – nem estava sozinho no ramo de luxo

Aleksander não foi o único espião a entrar no ramo de luxo no Brasil. No Rio de Janeiro, outros dois foram investigados: um pela confecção de colares. Outro tinha um antiquário com obras de arte. Os negócios de fachada facilitam as redes de contatos e informantes, uma estratégia herdada da KGB, a agência de espionagem russa da União Soviética.

O próprio presidente da Rússia, Vladmir Putin, era da KGB e já apareceu em uma insólita fotografia ao lado de uma visita do presidente norte-americano Ronald Reagan em visita diplomática à Praça Vermelha, em Moscou. Mas a abordagem radical não era totalmente infalível.

Segundo o The New York Times, a contra inteligência da Polícia Federal em Brasília recebeu uma dica da CIA em 2022 sobre espiões russos em território brasileiro. A prisão de um homem com documentos falsos em um voo de São Paulo desencadeou a Operação Leste, no início de 2024. Os investigadores trabalharam na surdina contra o grupo — cujo número total é incerto.

O Paulista Tower, onde suspostamente funcionava a empresa de Eric em São Paulo - só supostamente — Foto: Reprodução/Google Street View
O Paulista Tower, onde suspostamente funcionava a empresa de Eric em São Paulo – só supostamente — Foto: Reprodução/Google Street View

Aleksander, ou Eric, era um alvo relativamente fácil. A exposição no programa “Empresário de Sucesso” oferecia o necessário: um endereço, o nome de uma empresa e de funcionários e até mesmo uma página nas redes sociais. Segundo o jornal, a moleza acabou com a invasão russa na Ucrânia.

A ordem foi dispersar os agentes infiltrados pelo mundo e evitar o constrangimento de ter um espião descoberto, colocando abaixo o principal objetivo da missão, que é a total discrição. Aos americanos, Eric foi descrito como um “gringo com sotaque”, que instruiu e soprou todas as falas sobre “disrupção” e detalhes de colares para uma suposta funcionária da Esfel.

Nosso país tem certas facilidades para tornar os documentos falsos em impenetráveis. O brasileiro “não tem cara”: pode ser branco, negro, amarelo, indígena. Isso facilita passar batido em aeroportos no mundo. A certidão de nascimento também pode ser feita em um cartório com testemunhas e dar acesso a toda burocracia seguinte (título de eleitor, CPF, RG, etc.)

Ao contrário dos colegas espiões, Aleksander elevou a discrição à máxima potência. Não se sabe se fez amigos ou namorados no país. Nem se atreveu a posar para câmeras e ir parar nas redes sociais. Como um empreendedor de luxo, facilitava encontrá-los a partir do CPF e CNPJ. E foi assim que a PF decidiu fazer. Tanto em São Paulo quanto na Asa Norte em Brasília.

Assim como a GQ Brasil, os policiais não tiveram sucesso. Em meio à caçada a demais espiões e alertas enviados para a Interpol, Aleksander fez as malas. Não se sabe quando nem para onde ele foi. A suspeita é que tenha voltado para a Rússia antes dos policiais o enquadrarem por espionagem.

A reportagem também apurou que, antes de se tornar uma joalheira, Aleksander a registrou em 2017 como uma gráfica com endereço registrado no bairro Vila das Mercês, na Saúde, zona sul de São Paulo. Lá, os telefones residenciais também não atendem. No fim, Aleksander venceu a caçada. A Embaixada da Rússia no Brasil não se pronunciou à imprensa sobre a “fábrica de espiões” gerida por aqui.

O paradeiro das joias – ou se elas existiram, de fato – segue um mistério. A última publicação da Esfel, comandada pelo “empresário de sucesso”, nas redes sociais é de 2022. Trata-se de um anel com esmeraldas e diamantes. O post cita Aristóteles, um “grande fã” do mineral. “[Ele] dizia que possuir uma esmeralda melhora o discurso durante os negócios e auxilia na vitória”, diz.



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